domingo, 20 de março de 2011

Interview for Rickson Gracie Postage Especial






Engraçado. Rickson é especialista em algo que não conhece: a surra. Um animal que não conhece predador, cedo ele percebeu que a única pessoa que poderia domá-lo seria ele mesmo. Fez disso a sua vida e deu no que deu: o maior lutador do mundo. Há muito tempo na toca, hoje está pronto para o grande bote. Sua última luta. Em 460 lutas oficiais, ele nunca perdeu. Por isso nosso entrevistado é a presa mais cobiçada do reino da pancada. “Tem gente louca para colocar minha cabeça no muro”, ele se orgulha. Será um evento épico no Japão, terra onde Rickson é idolatrado: transmissão ao vivo, documentário nas mãos de José Padilha e Marcos Prado. Só falta uma data e o nome do adversário. Quanto ao cachê, ninguém no fight business duvida que será o mais alto já pago a um lutador de desafios. De cifras, Rickson não fala. É segredo.

Também com os fatos ele é contido. Não fala sobre a pancada que tomou do destino em 2001, quando seu filho Rockson, então com 19 anos, morreu em Nova York. Não fala sobre sua separação de Kim, a mãe de seus filhos. Nem se alonga sobre a recente morte do primo Ryan. É vago quando fala do passado, retém detalhes. Mas é assertivo e monolítico quando define seus conceitos.
Assim como seu corpo sólido, toda sua certeza parece conter algo sob pressão. Rickson é seco, direto, calmo e objetivo. Nas duas horas de conversa gravada, não fez uma piada. Não há risos nas páginas a seguir. Mantém os olhos fixos nos do repórter e fala pausado, em tom doutrinário, de alguém que, humildemente, já se sabe um mestre. Por isso prefere derramar o verbo em mandamentos: “Ser bom exemplo, servir de liderança para que pessoas me tenham como referência”.

Há quem possa achar estranho tomar como exemplo um sujeito que, para as massas, é um triturador de homens. Porém, o que acontece no ringue não passa da manifestação extrema da disciplina e do autocontrole, lições herdadas do pai, Hélio Gracie, 94, patriarca do jiu-jítsu brasileiro que ganhou o mundo . Lições tão físicas quanto filosóficas, transformadas em títulos por Rickson e seus irmãos, que fizeram do sobrenome uma grife de ensino de arte marcial. Para o lutador, a herança não são a eficácia e o sangue no ringue, e sim a confiança que seus alunos aprendem para levar a vida.

Além de selar com milhões seu currículo, a luta que deve ser realizada até o fim do ano marcará o início de sua carreira de cartola. Insatisfeito com o rumo ultraviolento tomado pelos torneios de vale-tudo, Rickson idealizou o Budo Challenge, novo circuito de lutas que pretende resgatar o quimono, a técnica e o respeito às artes marciais clássicas e definir os 44 melhores lutadores dos estilos de lutas mais voltadas para o solo.

Após 18 anos de Los Angeles, onde mantinha família, negócios e uma academia muito bem-sucedida, Rickson está de volta ao Rio de Janeiro. Treina todo dia, rotina que inclui musculação, exercícios cardiovasculares, movimentação de tatame, yoga. Surf, sempre que dá. Bebe água sem parar, come seis vezes ao dia, dorme cedo, evita festas e imprensa. Rickson precisa de sossego. Precisa estar atento. Precisa estar pronto para sair com tudo de sua toca. Pronto para o último ataque.




Você está pronto para sua última luta? Estou muito otimista de que este ano aconteça... talvez seja mesmo a última. No meu coração, não tenho mais nada a provar pra ninguém. Confesso que a maior motivação é trazer um conforto para meus filhos, até hoje eu não tenho condições.

Não? Não tem um pé-de-meia considerável? A gente não pode pensar assim. Não interessam as conquistas do passado. Se você tem a oportunidade de matar um búfalo enorme... Eu me sinto um caçador, um provedor para a minha família. Não poderia recusar uma chance dessas.

Então vai ser uma bolada. É... vou pôr meu burro na sombra.

De quanto é sua bolsa? Não posso falar mesmo. Questão de contrato, confidencial.

No Japão? Sim. É onde tem o circo mais bem montado. Tá em andamento, mas como não tem nada assinado, definido, só mantenho meus dedos cruzados.

Você é idolatrado no Japão, não? Não posso andar na rua no Japão. É muito difícil. Eles são loucos por artes marciais, pela maneira do guerreiro. E eles puderam vivenciar diante da minha experiência o que na teoria eles tinham através do Musashi, dos grandes guerreiros. Hoje, no Japão, eu represento um samurai moderno, que de certa forma serve de referência para muita gente.

Esta última luta vai ser com o Sakuraba? Não sei... Especulação! Por enquanto não posso garantir, mas está perti­nho de fechar. Sei que muita gente gostaria de lutar comigo para colocar minha cabeça num muro. Muita gente fala do Sakuraba, o matador de Gracie, né? Se for ele, vai ser ótimo.

Você não perde essa? Por que iria pensar em perder, a essa altura do campeonato?

Não pode nem pensar em perder? Tem medo da derrota?
Rapaz, o medo eu vejo como um sinal de inteligência, sinal de preservação. Tanto que meu maior medo é sair deste mundo. Tenho medo de morrer porque não sei o que vai acontecer. Eu só tenho medo daquilo que eu não conheço, porque eu não posso calcular o perigo, como agir. Claro que eu tenho medo, como todo mundo. Mas eu negocio com esse sentimento de uma forma muito simples. Procuro me ajudar fazendo o que posso fazer para me proteger. Mas na hora da luta eu deixo todo meu medo já no hotel: não chega ao ringue nem ao vestiário. Depois de certo ponto, quando não há uma situação que não seja racionalmente previsível, eu entrego a Deus. Aí meu medo acaba, porque entrego minha vida à minha missão e perco o medo de morrer, porque tudo está entregue a uma determinação superior que não está na minha mente.

Você se sente uma outra pessoa quando entra no ringue? Não. Eu tiro totalmente a consciência e entro em uma zona de vazio. Minha mente deixa de raciocinar e eu passo a viver dentro do meu instinto e do que eu treinei. Não penso em nada, em ninguém, não escuto barulho. Somos só eu e o oponente.

Você fala bastante de Deus; é um cara espiritual? Muito. Não ia a igreja ou seita. Mas meu pai me fez entender nossa relação com o universo. Que não escolhemos quando viemos, não vamos decidir quando vamos. Que existe uma razão para tudo. E temos que honrar esta missão: a gente está aqui para servir. Não podemos desperdiçar potencial ou qualquer outro recurso. Isso me fez ser uma pessoa atenta ao contexto, à natureza, à relação que eu tenho com as pessoas, ao respeito que tenho à evolução natural das coisas. Não acredito que acabe tudo quando morre ou que a pessoa nasceu vinda do nada. Acredito que existe uma bagagem espiritual.

Mas acredita em um deus que nos observa? Minha definição de Deus é a única coisa que você não pode explicar, que é o espaço que existe entre todas as moléculas e átomos. Que faz tudo girar. Da mesma forma que os átomos no fundo não se encostam, a Lua não encosta na Terra, o universo macroatômico e micro são a mesma coisa. Um pedaço de tecido é igual a um pedaço do universo.

E você tem algum ritual?
Eu rezo. Procuro esvaziar minha mente de pensamentos e procurar abrir um canal para uma entidade superior desconhecida e aceitar as informações que a gente não fala e não vê.

Acredita em uma força maligna? Claro. Mas acho que o bem vence o mal.


Onde está essa força ruim? Na consciência. Está criada no ódio, na covardia, no medo, na inveja. É criada no homem. Não está na natureza. Se você der mole e um tubarão te pegar ele não foi mau, só seguiu o instinto. Maldade está em você saber que poderia ajudar uma criança e não ajudar. Ou saber que você está agindo de forma incoerente com o que é certo para conseguir dinheiro ou alguma facilidade. Usar de covardia, roubar, por interesses pessoais. Mas o bem simplesmente tem mais poder. Mesmo que venha uma guerra atômica e mate todo mundo, eu acho que o bem vai criar tudo de volta. Por mais maldade que o ser humano faça, que ele queira fazer, não pode neutralizar a beleza da natureza.

E você é pessimista em relação ao futuro do planeta? Não sou pessimista, eu sou realista. A gente vai ter que se adaptar. É uma obrigação de todos nós buscarmos uma solução para lidar com a realidade.

Acha que a sociedade, política e economicamente falando, é capaz de se adaptar a tempo? Não. A mente humana é muito egoísta. É fator gerador dos problemas da humanidade. Um cara que produz petróleo vai vender petróleo até acabar, não vai pensar em oferecer água limpa. E o que está sendo feito é muito pequeno em relação à necessidade do planeta. Está chegando aí a qualquer hora o fim dos tempos, quer dizer, fim do petróleo, bomba atômica... essas porras vão vir a qualquer hora.

Você pensa muito nisso? Não penso mesmo. Não me preocupo com o que não existe. Só vivo a realidade.

Pensar nisso não significa se preparar, se prevenir dos riscos, como uma luta? Certo, a preparação estratégica é válida. Mas preocupação, perder o sono, a falta de entendimento de que mesmo que você queira, tem coisas que você não pode mudar. Como em uma luta mesmo, posso até antecipar problemas que meu oponente possa me causar, treinar para isso, mas não vou perder o sono. Tenho que aceitar que, eventualmente, na pior das hipóteses, poderei perder e acordar nessa situação.

Por que voltou a morar no Brasil? Foram quase 20 anos de EUA. Sou muito grato pelo que consegui em termos de educação para os meus filhos, por oportunidades profissionais. Mas existe um vazio em viver fora do Brasil que é irreparável. Nós precisamos de uma troca de energia, de uma situação sentimental que não existe lá fora. Isso acabou enchendo o meu saco. Agora estou tentando manter meus negócios overseas e uma sede aqui. Eu sinto que no Brasil eu consigo receber energia e dar no mesmo nível. Lá eu sinto que estou sendo sugado e eu não tenho uma maneira de reciclar isso.

O que nos EUA te suga as energias? É mais do coração, de como me sinto, como me posiciono no mundo. Vivo pela razão, mas obedeço meu coração. Estar feliz é o mais importante.

Sempre foi assim, com preocupações energéticas, espirituais? Desde que comecei a entender isso. É importante que a gente tenha sensibilidade pra entender valores importantes... Outras pessoas baseiam a vida em cima da grana, da carreira ou de conquistas.

E qual é a sua base? É me sentir emocional, moral e intelectualmente feliz. Não é dinheiro, não é o que está acontecendo à minha volta: é como eu me sinto.
Hoje você está se sentindo bem? Não poderia me sentir melhor.

Como foi sua infância? Como a de todas as pessoas que tiveram uma boa infância, foi equilibrada. Tive muito amor em casa, bons conselhos e um certo controle. E, vindo de uma família tradicional das artes marciais, quando você começa a se posicionar no mundo como um Gracie começa a ser apontado com um próximo campeão. Vai ser igual a seu pai, não vai, será que vai ser bom ou vai descambar pra outro lado? E logo eu fui me imbuindo dessa condição de ser um Gracie, me relacionar com o jiu-jítsu de uma forma profunda, entender a coisa de uma forma não só filosófica, mas também profissional.

Então sempre quis ser lutador? Desde pequeno já queria ser lutador, competir, agradar meu pai, as expectativas. Meu pai não ligava pro colégio. Não queria saber de boletim, queria saber de medalha de ouro. E essa era uma forma boa de me relacionar com ele.

E o boletim como era? Sempre vermelho. Nunca fui de estudar. Gostava de matemática, ciências.

E na rua? Cara, eu sempre fui um soldado do bem. Mas muitas vezes, até pra proteger alguém ou me sentir um herói com testosterona, eu brigava na rua. Meu pai sempre ensinava que se você está errado pede desculpas. Se está certo tem que estar pronto para morrer pela razão. Baseado nisso, quando você vê alguém ser maltratado... Eu era meio metido a ser xerife. Você bota esse tipo de influência, uma boa dose de testosterona e muita ignorância por ser um moleque... dá uma forma meio agressiva.




Você se considera agressivo? Não. Sou muito tranqüilo.

Mas a imagem dos Gracie não é tranqüila... Essa imagem de brigadores da família está totalmente ligada ao produto que a gente vende: o jiu-jítsu em forma de eficiência, muito diferente de você ser agressivo desordenadamente. Quando você tem confiança, se torna eficiente, mais ponderado, tolerante. Grandes lutadores são muito tranqüilos.

O que é violência para você? É fruto da insegurança, do medo e da covardia. Não acredito em violência sem razão. É gerada por algum fator, que geralmente tem a ver com insegurança. Pra mim, violência é algo mais mental que físico.

Mas essa imagem da briga de rua, de gangues, de grandes covardias, muito associada à popularização do jiu-jítsu, é bastante violenta. Você não se sente de alguma forma responsável por esse fenômeno? De forma alguma. Muito antes do jiu-jítsu sempre houve covardes, grupos que usavam de uma superioridade física para fazer maldade. Isso não é da arte marcial, é de índole. O jiu-jítsu dá poder e técnica ao elemento. Eu tenho e tive muitos alunos que se tornaram grandes homens, que venceram na carreira com a confiança do jiu-jítsu. E tive outros com má índole, que mesmo antes de entrar na academia já batiam nos outros, e agora batem com mais eficiência ainda. São covardes eficientes.

Então qual a lição principal na academia? O ideal é que a arte marcial aumente a autoconfiança, a disciplina, o respeito, o autocontrole. Se você não controla seu próprio instinto, perde pro seu oponente e na vida.

Esse é o segredo? Não, mas é fundamental. Você tem que saber se controlar. Nas horas de pânico, saber respirar, mentalizar, visualizar. Isso é parte da metodologia, da disciplina, coisas que são do esporte. Uma técnica emocional.


Você é considerado o maior lutador de todos os tempos porque nunca perdeu uma luta; tem um cartel de 460. Por quê?
Treinei isso a vida inteira com meus irmãos, primos, amigos, alunos, profissionais. E toda a vida o Rickson sempre foi bem-sucedido porque houve uma série de componentes que estavam juntos. Uma dedicação à saúde, uma velocidade mental, uma capacidade de controlar as emoções, uma capacidade de ser agressivo sem se descontrolar. Como um leão: ele está pronto para matar, mas está calmo, paradinho, esperando a hora certa de pular.

Não tem um gene aí, um destino? Essa dualidade de manter quesitos morais e mentais eu não escolhi. Sinto que foi um presente de Deus. Alguns irmãos e parentes não me acompanham no mesmo ritmo. Eu simplesmente uso bem o que Deus me deu. Até onde vai o que eu fiz e o que provoquei, é difícil dizer.

Antes da entrevista, você me adiantou que é um cara reservado, não gosta de se expor demais. Como é sua visão da imprensa? A mídia tem que expor. O público é curioso e o jornalista quer vender o que ninguém sabe. Vai muito da maneira de como o repórter edita e de como o entrevistado expõe a própria imagem. Vejo a mídia como um facilitador enorme.

Mas a sua reserva toda em falar se deve a quê? A intimidade deve ser falada em um campo pessoal. Não tenho prazer em me expor para o mundo. Não levanta meu ego.

O prazer está onde? Em seguir minha missão, ser bom exemplo, servir de liderança para que pessoas me tenham como referência. Assim como traficantes são exemplos de conduta para milhares de crianças no morro que nascem sem muitas opções. Para eles é o herói. Procuro, através da minha exposição e do meu esporte, me tornar uma boa influência para as pessoas que se interessam pelo que eu digo.

Isso para muita gente pode parecer incoerente, você se tornar um exemplo apesar de sua imagem quase sempre ser associada a uma surra que você deu... Você pensa que muita gente te vê como quase um monstro, um matador? Porque a imagem final que chega para a grande maioria é pela TV e é extremamente agressiva, com gente brigando mesmo, apanhando feio, sangrando. Mas eu nunca pensei nisso. Porque toda a minha vida foi voltada a lecionar jiu-jítsu, que, na tradução, é arte suave. Quando você está de frente para um aluno é para resolver um problema dele. É fazer ele se sentir melhor, mais corajoso, alerta e mais pronto para viver. Desde os 14 ajudo meus irmãos a darem aula, nesse parâmetro vejo uma coisa totalmente nobre e digna. Através da eficiência física e da disciplina, fui capaz de ajudar milhares de personalidades, de formar pessoas mais equilibradas. Vejo o jiu-jítsu quase como uma religião, não como combate.

Para quem não entra em uma academia, a maioria das pessoas, a imagem que o esporte passa é mais ligada à brutalidade que ao equilíbrio. Isso tem a ver com a popularização do MMA [Mixed Martial Arts], do UFC [Ultimate Fighting Championship], do Pride. Meu pai fazia vale-tudo nos anos 40, 50... Mas isso nunca fez a imagem dele como a de um cara violento. O conceito do vale-tudo é um desafio entre estilos. Qual a melhor arte marcial. E nós, os Gracie, apostamos tudo no nosso jiu-jítsu. Então a gente estava sempre disposto a provar, a conferir as coisas em que acreditamos. De certa forma, isso não abraça violência, não tem soco na cara, nariz sangrando. É mais imobilização, técnica. Meu pai tinha 60 kg e brigava com gigantes. Meu irmão Royce é um cara leve e ganhou de gigantes do UFC. Mas, com a difusão desse esporte, existe uma nova raça de elementos que se prepara em todos os estilos para se confrontar em cima de uma regra bem violenta. Se tornou um esporte extremo que não é coerente com nenhuma disciplina. Ali você é simplesmente um gladiador. Realmente, não tem um lado filosófico, um sistema disciplinar, é mais o sistema do pitbull. Exatamente por isso estou criando uma nova linha de evento...

Qual? É uma liga chamada Budo Challenge, um circuito profissional de lutadores. Que pretende, como no circuito do WCT, fazer etapas internacionais e qualificar os Top 44. Todos nessa liga vão ganhar dinheiro, como nos rodeios, no surf. Um evento que resgata a parte tradicional das artes marciais, aumenta muito a dinâmica da luta e tira aquele confronto selvagem. É menos sangrento, mais dinâmico, tem mais técnica e vai dar uma boa profissionalização a tantos milhares de atletas que não querem se profissionalizar no MMA e não têm opção para ser profissionais de quimono. Como grandes lutadores de jiu-jítsu, como o grande judoca Flávio Canto, que, a partir do ponto que já ganhou a medalha, ou pára ou abre uma academia. Eu fiz o primeiro piloto e agora estou tentando viabilizar comercialmente. Estou muito animado com isso.

Vai pro tatame ou vai só dirigir? Vou só criar o conceito, estou praticamente parando de competir. Mas meu filho está superinteressado...

Ele vai ser campeão? Já é campeão. E tem tudo pra ser também no Budo Challenge.



Existe mesmo essa rivalidade agressiva entre academias? É uma tradição?
É que nem São Paulo e Corinthians... Olha, eu vou muito ao Japão. E fiquei chocado quando soube que toda província brigava entre si. Não precisavam de inimigos fora do país, saíam no pau o tempo todo. Era um xogum contra outro, dentro daquela filosofia de arte marcial de respeito e conduta. Acho que a competitividade está no homem. Quem é o melhor, o número um. A gente está aí para conquistar uns aos outros, em todas as áreas. No esporte eu vejo isso como construtivo até. Se você perde para uma academia, começa a treinar, treinar e vai ganhar depois. Isso acelera o nível.

Mas e invasão de academias, pancadaria? Só disputa no nível moral. Quando dois professores têm problemas e querem brigar, podem envolver as academias. Mas aí é um desvio moral, um desequilíbrio.

Já participou de coisas assim? Fiz coisas desse tipo. Sem arrependimento. Nem meu nem das pessoas envolvidas. Houve um pacto de cavalheiros. No fim, se cumprimenta e vai embora com o rosto amassado. Sempre houve honra.

Tem ou teve inimigos? Já passei por várias experiências que me deixaram com essa energia negativa. Mas a primeira coisa que faço é tentar me livrar desse tipo de emoção. Não é difícil pra mim, porque já me acostumei. É entender que o que não tem solução já está solucionado.

Quando você começou a ganhar todos os torneios, chegou a se achar demais, se sentir o dono do mundo? Sim... na primeira fase, com uns 16 anos. Comecei a perceber que era bom, que estava acima da média, minha cabeça funcionava de forma diferente. E comecei a me sentir especial e querer provar isso para todos. Para alimentar meu ego, na minha insegurança de teenager. Depois que confirmei que era bom mesmo, com o ego lá em cima, aí tive que fazer minha estrutura. Comecei a entender que minha exposição tinha que acompanhar uma filosofia, um exemplo. Ver que, mesmo dentro da minha disciplina, não era diferente das pessoas que estavam à volta. Poderia ser o melhor no jiu-jítsu, mas tinha que respeitar os talentos em outras áreas. Não vejo diferença do que faço para um grande advogado, um grande médico, um grande músico. Isso me botou em uma situação de base onde eu não me vejo melhor que ninguém. Mas, dentro do meu universo, me sinto superior. Por isso, até hoje me sinto superperfeito.

Você parece gostar muito de quem você é. Muito. Nunca me arrependi de nada que fiz.




Isso não pode ser sinal de arrogância?
Não, o que eu faço eu assumo. Muitas vezes não foi a melhor opção, foi um erro. Mas você tem que aceitar que quando você errou foi a melhor coisa que você pôde fazer. O mais importante é não ter intenção de fazer o mal. Isso eu nunca fiz. Então arrependimento é algo que não cabe.

Você já apanhou? Não... acho que não. Nunca aconteceu essa tragédia.

E seu pai nunca te bateu? Nunca. Em casa se tivesse porrada envolvida ia ser um problema grande. Era na base do respeito. Ele era bem general... eu preferiria apanhar a tomar esporro dele, que você sentia na pele mesmo.

Na entrevista que seu pai deu para a Trip há dez anos ele disse que nunca amou mulher nenhuma, que as encarava em um patamar diferente. Você se identifica com isso? Não. Respeito muito a liderança que ele teve na minha vida, o relacionamento que teve com a minha mãe e no segundo casamento. Mas pra mim a base da coisa é o amor. Não pode ser uma coisa baseada na procriação, no sistema patriarcal. Valorizo o relacionamento entre homem e mulher como base da família.

Você fala muito de seu pai. Mas qual o papel da sua mãe na sua formação? Minha mãe foi sempre muito submissa ao meu pai, sempre foi uma pessoa doce. Mas, pelo grau de submissão ao meu pai, não mantinha a disciplina que poderia como uma mãe dura. Via um zero no boletim e falava com meu pai. Teve um pequeno lapso de disciplina em mim. Ela sempre passou a mão na minha cabeça, perdoando tudo. E acho que o papel da mãe tem que ser mais de educadora, faltou isso.

O quê? Disciplina, dar mais valor às conquistas. Ficava a princípio achando que tinha a obrigação de ser bem tratado. Eu era meio reizinho em casa: era bom em jiu-jítsu, meu pai adorava isso em mim, eu era praticamente intocável. Deu certo, mas poderia ter dado errado.

Você já se rebelou contra seu pai? De uma forma inteligente, sim. Eu pegava a própria maneira dele de ser. “Eu nunca estudei e sou o que sou”, ele falava. Um dia, eu disse que não queria mais estudar, tinha 13 anos. Ele deixou, mas disse para não pedir dinheiro pra nada. Peguei minha prancha e fui pro Sul, passei dois meses na casa de um amigo. Todo mundo preocupado. Voltei com outra atitude, comecei a dar aula com meu irmão, ganhar uns tostões. Aí comecei a sentir falta da merenda, das gatinhas, da social do colégio... e voltei. Mas só colégio de baixa reputação. Passei até no vestibular para educação física, mas nem cursei. Já estava bem no jiu-jítsu, ganhando mais do que um diretor de banco.

Você está separado da Kim... Isso eu não tô a fim de falar, não.

Mas hoje está namorando, sossegado? Estou bem feliz e tranqüilo no Brasil.


Golpe da vida
No início de 2001, Rickson Gracie tomou o pior golpe de sua vida: a morte de seu filho Rockson. O rapaz de 19 anos estava havia quatro meses longe da casa dos pais em LA, tentando uma carreira como modelo em Nova York. Depois de tempos sem notícias do filho, Rickson e sua mulher, Kim, descobriram que Rockson havia morrido três semanas antes. Foi enterrado como indigente. O corpo foi reconhecido pela tatuagem que Rockson tinha no braço, “The Best Father in The World: Rickson Gracie”.
A família, na época, afirmou que ele sofreu um acidente de moto. A polícia, na época, disse à imprensa que Rockson foi encontrado em um quarto de hotel. Suspeita de overdose.
Os pais reclamaram o corpo. As cinzas foram jogadas no mar de Malibu, a praia favorita de Rockson.
Rickson não se sente à vontade para falar sobre isso em nossa entrevista. Mas já escreveu um livro, ainda não editado, sobre a tragédia e como lidou com ela.

É um assunto bem difícil, mas preciso perguntar sobre a morte do seu filho Rockson... Cara, não acho que vale a pena a gente falar disso. Precisaria falar muito em vez de algumas frases. E as pessoas vão interpretar errado, eu prefiro não falar mesmo. Fiz um livro a respeito, ainda não editei. Mas aqui, nesta circunstância, não acho que cabe às pessoas saberem como me sinto em relação a isso. Prefiro reservar isso a minha intimidade e não ao público.

A família Gracie é realmente dividida? Em que sentido?

Depois da tragédia com o Ryan, foi dito que parte da família não se fala... Evidentemente que em business não existe ligação. Minha academia não tem ligação com a do Renzo, a do Rorion. Isso muitas vezes cria uma certa diferença de interesses. Existe uma competição saudável. Não existe inimigo na família, gente que não se fala. Da minha parte principalmente, falo com todos, eles gostam de mim...

Como você vê a morte do Ryan? Negligência médica. Ele já estava sob a influência de alguma substância, o cara encheu ele de remédio e o coração dele não agüentou.

A família está tomando que tipo de providência em relação a isso? Não sei, rapaz. Não estou a par.

Você já experimentou drogas? Já. Nascido e criado no Rio de Janeiro... Eu acho que, pra você dizer que viveu, tem que experimentar as coisas. Simplesmente se tornar uma pessoa isolada do que acontece é uma forma de fuga, medo, exclusão. Quando se fala em droga é açúcar, aspirina, maconha, cocaína, metanfetamina. Tudo são substâncias que alteram e causam dependência. Se você me pergunta se eu sou contra ou a favor, é muito relativo. Droga pode ser remédio. Tem gente que se trata com maconha. Muitos índios usavam drogas para entrar em estados espirituais. Não sou ninguém para questionar se pode ou não pode.

E quanto à legalização? Acho que, em um nível político e social, na minha opinião todas as drogas têm que ser liberadas. Porque tiraria o crime da questão. Qual o problema da droga? É você não saber administrar. Se você é dependente, até de açúcar, está mal. O problema é como você se relaciona com a droga. Aí pode ser doença, prazer, aventura... Proibindo, cria-se um mercado paralelo que alimenta o crime. Legalizando, passa a ser apenas uma questão médica e ajuda a favela a se livrar do tráfico. Claro que, mal administrada, a droga é o maior problema que tem. Mas aí é algo pessoal.

E você teve alguma má experiência com drogas, alguma dependência? Não. Graças a Deus, na minha juventude, sempre baseando minha vida no esporte, sempre foram aventuras esporádicas. No dia seguinte acordava já preocupado em treinar. Isso sempre me trouxe de volta ao padrão metódico. Talvez, se não tivesse outras aspirações, poderia me perder. Mas elas sempre tiveram um peso irrelevante na minha vida.

Como é sua rotina. Um dia típico seu? Parece até brincadeira falando, mas eu me divirto o tempo todo. Sou muito agradecido de poder viver minha recreação, meu trabalho, meu ganha-pão... tudo envolvendo prazer. Ou estou treinando, ou pegando onda, ou dando aula. Tenho uma rotina lúdica.

E como é seu treino? Quatro vezes por semana, musculação. Três por semana cardio. Todo dia uma ou duas horas de movimentação de tatame, com sparring ou sozinho.

Como você sente o tempo no seu corpo? Aí vem a experiência. Eu não trabalho as mesmas horas. Se reduzo o tempo em 20%, a qualidade desse tempo será 100 vezes maior do que anos atrás. Tento agir de forma a multiplicar meu tempo pela minha experiência e pela inteligência.

Como? Continuo pegando onda, só que só quando o mar tá bom, com a melhor onda, a melhor prancha. É um surf melhor do que quando tinha tempo para surfar o dia inteiro indo de ônibus para a Prainha. Cuido mais do tempo, da qualidade, seja treinando, fazendo amor, brincando ou dando uma entrevista.

E você está com quantos anos? Xi, esqueci há muito tempo. Faz parte da minha maneira de pensar não falar minha idade. Acredito na força mental, e educar sua mente a repetir sua idade é um grande defeito. Você enquadra uma idade que tira você da perspectiva sem tempo. Eu não tenho problema nenhum em ter nascido em 1959. Mas não sei quantos anos eu tenho. Se você diz que tem 30, 50 anos, fica em uma situação inconsciente de que não pode mais fazer o que você fazia com 15. Prefiro responder a uma atividade de 18 anos, ou de 100 anos. O mais importante é estar pronto! Pronto para ser uma criança, inconseqüente, responsável, para o que a vida te demandar. Senão você começa a se limitar. Eu não tenho problema em envelhecer. Eu estou pronto. X

Material Extraido da Revista Trip



Nenhum comentário:

Postar um comentário